As perspectivas das leis étnico-raciais incorporadas ao
planejamento e apropriadas pelos
sujeitos que integram o cotidiano da
escola[1]
Maria José Pereira Dantas- IFPB[2]
RESUMO
Este texto ao analisar a implantação
das leis étnico-raciais nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, perpassa a memória de
lutas sociais e destaca o planejamento como aporte teórico-metodológico e
mediação entre os novos desafios ideológicos/pedagógicos e o currículo
eurocêntrico e dogmático da escola brasileira, na perspectiva da diversidade
étnico-racial e resgate de conhecimentos (etnias negra e
indígena), historicamente exilados do currículo. O Planejamento é proposto
como Méthodos de Trabalho do
educador (pessoal e coletivamente), como postura e como forma de organizar a
reflexão e a ação, de superação da alienação e de reapropriação da existência.
O desejo, a vontade consciente de elaboração e realização. A partir do
conhecimento dessa realidade projetar a finalidade, esboçar o plano e agir. O
plano de ação representará um projeto intencional da escola, vai
além do operacional, é político intervém na realidade, resultante da
consciência e da vontade de superação da concepção eurocêntrica de
currículo.
Palavras chaves: educação,
planejamento, currículo, sujeitos, reflexão
1. INTRODUÇÃO
Ao tomar como objeto de estudo a implantação das leis nº
10.639/2003 e nº 11.645/2008 - que obrigam o ensino de história e cultura
afro-brasileira, africana e indígena no
currículo oficial da rede de ensino – inevitavelmente temos que
percorrer a memória de lutas sociais e assumir novos desafios ideológicos e
pedagógicos relativos à educação de novas gerações. E não dá para percorrer a memória
histórica sem considerar o histórico de militância desses movimentos,
especificamente do movimento negro, pela cidadania plena da juventude negra e pelo
combate a discriminação racial.
A Constituição Federal/1988 (artigo 215, §
1º) prevê a proteção do Estado para as manifestações das culturas populares
indígenas e afro-brasileiras, bem como para outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional, entretanto, são as leis 10.639/2003 e
11.645/2008 que têm provocado a
mediação, um rito de passagem, uma via de acesso ao currículo eurocêntrico e
dogmático da escola brasileira, imprimindo-lhe a diversidade cultural e étnica,
possibilitando às novas gerações a interação e o contato com a ancestralidade (a força, a energia que veio antes, mas que se faz presente no agora)
e com a memória (depositária dos
demais valores civilizatórios: religiosidade, corporeidade, musicalidade,
cooperativismo, ludicidade, oralidade, circularidade etc.) estruturada pelo
pensamento dialético de tradicionalidade & autenticidade e ancestralidade
& contemporaneidade. Uma experiência atualizada no calor das lutas afrodescendentes,
africana e indígena.
Esses conhecimentos precisam entrar na roda (circularidade),
no movimento, no processo da coletividade, onde todas as pessoas possam se identificar
na narrativa histórica dos grupos civilizatórios da sociedade brasileira. E
nesse movimento cíclico de exaltação e convite a um diálogo “a identidade dos
afrodescendentes precisa ser diuturnamente considerada pelo sortilégio da cor,
numa evocação dos ausentes, dos silenciados e dos aprisionados.” (NASCIMENTO,
1980, p.78)
Essas leis, supramencionadas, estão incorporadas à LDB e
precisam ser somadas a outros instrumentos jurídicos como a Declaração dos Direitos
Humanos/1948, um ideal comum de povos e nações, a Constituição Federal do
Brasil_CF/1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente_ECA/1990 e assim se constituírem
ferramentas pedagógicas, literalmente ou decodificadas, em favor da promoção de direitos, da denúncia da violação e da
formação para a cidadania.
Nessa perspectiva, direitos e garantias fundamentais/constitucionais
(CF do Brasil/1988, artigo 5º) indicam meios para a realização plena da
condição humana e norteiam os instrumentos políticos e jurídicos na conquista e
na efetivação de direitos, como o direito a
igualdade relativa à essência da condição humana e às oportunidades reais e
materiais, sem contudo, implicar desrespeito ou desvalorização das diferenças
naturais, biológicas, étnicas e culturais.
Instrumentos
jurídicos como a Constituição Federal, a Declaração dos Direitos Humanos, o
Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional - LDBEN dão expressão aos anseios e reivindicações de diversos
segmentos da sociedade brasileira e correspondem aos princípios políticos e
jurídico-constitucionais, bem como aos objetivos fundamentais da República
brasileira - “construir uma sociedade justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e promover o
bem de todos, sem prejuízo de origem, raça, sexo, cor e idade” (CF do
Brasil/1988, artigo 3º). E, nesse processo, a educação tem um papel categórico,
não é neutra e na sua dinâmica expressa as posturas e concepções perante a
realidade social, reafirmando e/ou negando interesses consolidados quanto ao
processo da desigualdade social/racial.
2. DESENVOLVIMENTO
Tornar
a educação cúmplice dos processos de transformação implica termos
posicionamento ético-político e uma defesa do projeto educacional pelo qual
estaremos dispostos a construir todos os diálogos para efetivá-lo. Nessa tarefa
também é desafio o resgate dos conhecimentos que historicamente não tiveram
evidência, mas que são essenciais “para desviar o curso do destino histórico-sociológico
trágico e destrutivo” (MACEDO, 2000, p.54), que foi traçado para os excluídos.
Essa busca, na perspectiva das leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, significa uma
construção de novos caminhos e novas chegadas, tanto pelo conhecimento em si, como pela afirmação de
identidade, necessária à valorização do/a estudante para seu desempenho no
aprendizado e na vida.
Segundo Marle de Oliveira Macedo (2000, p. 47-75), o Brasil foi o país
ocidental que mais tardiamente acabou com a escravidão, abandonando os escravos
à própria sorte, sem acesso a terra e a educação, retirantes que se empilharam
nas periferias da cidade, perdendo seus filhos e suas esperanças nas grandes
metrópoles – herdeiros de uma escravidão, da dor, do abandono e da impotência,
que os escravos foram relegados pelo país ao final do sistema escravista. Suas marcas
e fendas continuam presentes na sociedade, expressas na discriminação racial e
social, na violência, na miséria urbana, na pobreza, no desemprego, na
injustiça etc.
Ainda, segundo a autora, esses herdeiros e herdeiras, assim
constituídos por nada terem de seu, herdaram os espaços de cidade e ocuparam,
com todo o risco social e pessoal que isso acarreta para eles/elas e para a
sociedade como um todo. Além de ser corrente, que a vertente histórico-cultural
negra/africana fundamental na constituição do conjunto brasileiro de
civilização, permanece exilada do sistema de educação formal.
Sobre isto, Ferreira
(1992) afirma em Macedo (2000, p.67)
As consequências desse exílio são desastrosas. Aqui um povo se ignora.
Desconhece a sua história, o processo de sua formação, o sentido (e a razão).
De sua fisionomia atual. Mas será necessário suprir esta carência até mesmo
para que se torne viável a construção entre nós de uma didática da academia,
para além de qualquer exclusivismo discriminatório.
Esse fato embruteceu
gerações, tanto de estudantes negros/as quanto de brancos/as, impedindo-nos de
sermos seres realmente livres dos preconceitos, dos estereótipos, dos estigmas,
entre outros males.
Embora
os/as mais renomados/as cientistas sociais do mundo contemporâneo defendam a
idéia de que as raças não existem, as expressões raça e racismo se
tornaram comuns nas línguas nacionais desde o século 19. Mesmo
concordando que as raças não existem, a expressão se vincula a imagens
biológicas, estereótipos, pigmentação da pele etc. – a exemplo das denominações
branco europeu, negro africano, amarelo
asiático -que, por si mesmo, não expressam racismo, uma vez que o racismo se torna evidente quando um determinado grupo
étnico é inferiorizado por outro pelo fato de ser diferente e, por ser
diferente, passa a ser discriminado e perseguido e a sofrer privações.
Parafraseando Elio Flores (2008, p. 23-28), a expressão
etnia comporta mais significados do que raça. Os grupos sociais, produtores de
bens materiais e culturais, possuem identificações étnicas; postulam origem,
memória e história comuns que os remetem a uma ancestralidade. A etnia se configura,
nas sociedades históricas, como um elemento político de caráter tático e
estratégico, expressa uma realidade cultural na qual as pessoas que
formam um determinado grupo étnico, se baseiam na percepção comum e
experiências espirituais compartilhadas e, com freqüência, visam superar
privações materiais. Os grupos étnicos são dotados de
mobilidade, contato, informação e identidade: seus membros se identificam e são
identificados por outros como diferenciáveis.
As
sociedades indígenas no processo de colonização do Brasil, início do século XVI,
sofreram privações relativas aos seus recursos naturais pelos europeus, aos seus
bens culturais (danças, música, festas) e espirituais (crenças, deuses, ritos),
além da inferiorização. Em outras palavras, foram perseguidos na tentativa de
sua extinção. E nesse processo em que os movimentos sociais, fortalecidos nas
etnias e ancestralidades indígenas, se constituem grandes atores sociais, tais sociedades se
inserem nas tensões e dilemas nacionais contemporâneos, resgatando as etnias
indígenas a partir de suas diferenças culturais e históricas, lutando por seus territórios
e culturas, bem como reafirmando políticas emancipatórias e de elaboração das
novas cidadanias indígenas pautadas na igualdade de direitos e justiça.
Segundo
Elio Flores (2008, p.25),
No Brasil, são cada vez mais
crescentes as lutas dos povos indígenas pelas terras da Amazônia e pelos
recursos naturais que dizem lhes pertencer desde antes da chegada dos
portugueses. Em todos esses casos, um traço de ancestralidade tornou-se o
elemento de unidade política para valorizar as tradições étnicas e os seus
direitos humanos.
Ainda segundo o autor, o retorno dessas identidades ancestrais
não pode ser classificado como racista. E que,
no Brasil, outro exemplo extraordinário tem sido a valorização da
ancestralidade africana pelos movimentos negros contemporâneos. Sendo
importante enfatizar que as primeiras elites republicanas, mesmo os setores abolicionistas,
almejavam o desaparecimento da população negra do cenário social para que
predominasse o perfil europeu. Transcendendo para as suas gerações o posterior
desejo de branquitude no pigmento da pele e do pensamento, pelo cultivo das
tradições européias no Novo Mundo. Desta forma, a população negra não só
resistiu à longa exclusão social e econômica do período republicano, como
também lutou pelo reconhecimento político de seu protagonismo histórico, a
exemplo dos movimentos quilombistas em defesa da identidade étnica –
afrodescendentes, afro-brasileiros/as e negros/as. E seus ancestrais, continuam
a criar e recriar as Áfricas vivas no Novo Mundo.
É
importante enfatizar que não é concebido como preconceito ou ‘racismo’ o fato
da sociedade brasileira comemorar civicamente a participação dos povos italianos,
alemãs, sírio-libaneses, portugueses e japoneses no Brasil, bem como reconhecer
seus descendentes ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, luso-brasileiros,
nipo-brasileiros, etc. Por que se concebe como racismo reconhecer direitos étnicos de indígenas e afrodescendentes?
Nesse sentido, o movimento
negro alimentou e continua alimentar a luta histórica pela igualdade racial e
pela incorporação dos excluídos à sociedade, ao mesmo tempo em que integra e produz
cultura e saber cultural, um patrimônio a ser respeitado. Inclusive influenciando
no setor jurídico e nas políticas públicas e, como consequência histórica, provoca a produção
científica e didática sobre história e cultura afro-brasileira e africana.
Desde o princípio a luta de negros e negras, após a abolição
da escravatura, pautava o direito a instrução (educação formal). Por exemplo, Abdias
do Nascimento defendeu na 1ª edição do jornal O QUILOMBO (1948-51) que era necessário “lutar para que, enquanto
não for gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos estudantes negros,
como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e
oficias de ensino secundário e superior do país, inclusive nos estabelecimentos
militares.” Essa educação era
concebida como fator de integração sócio-econômica, muito embora essa
busca não tenha sido suficiente para a ascensão social e a mobilidade vertical
individual ou coletiva. E ao se constatar historicamente que a escola promove a
educação formal calcada num currículo que prega o embranquecimento cultural
eurocentrista, constatou-se, também, a
perpetuação das desigualdades raciais e a negação da memória da matriz africana, tornando-a parte
inalienável da consciência brasileira.
Então, os movimentos sociais negros e intelectuais negros/as
militantes passaram a incluir em suas agendas de reivindicações junto ao Estado
Brasileiro, na perspectiva da educação, o estudo da história do continente
africano e de africanos e africanas, a luta de negros e negras no Brasil, a cultura negra brasileira
e a matriz africana na formação da
sociedade nacional. Parte desta reivindicação já constava na declaração final
do Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo Teatro Experimental do Negro
(TEN), Rio de Janeiro, entre 26 de agosto e 4 de setembro de 1950, no qual
recomendou-se, dentre outros pontos, o estímulo ao estudo das reminiscências
africanas no país bem como dos meios de remoção das dificuldades dos
brasileiros de cor e a formação de Institutos de Pesquisas, públicos e
particulares, com esse objetivo.
Carlos Hasenbalg (1987),
afirma em Santos (2005, p.24) que a agenda de reivindicações das entidades
negras contemplava áreas como: racismo, cultura negra, educação, trabalho,
mulher negra e política internacional. E na educação, dentre outras, as
reivindicações eram contra a discriminação racial e a veiculação de ideias
racistas nas escolas; por melhores condições de acesso ao ensino à comunidade
negra; reformulação dos currículos escolares visando à valorização do papel de
negros e negras na História do Brasil e a introdução de matérias como História
da África e línguas africanas e pela participação dos/as negros/as na
elaboração dos currículos em todos os níveis e órgãos escolares.
De acordo com Santos
(2005, p. 25), pontos pautados pela histórica reivindicação dos movimentos
sociais negros foram atendidos pelo governo brasileiro na segunda metade da
década de 1990, a
exemplo, da revisão de livros didáticos ou mesmo a eliminação de vários livros
didáticos em que negros e negras apareciam de forma estereotipada representados/as
como subservientes, racialmente inferiores, entre outras características
negativas. Bem como as pressões anti-racistas e legítimas desses movimentos,
políticos/as de diversas tendências ideológicas, em vários estados e municípios
brasileiros, reconheceram a necessidade de reformular as normas estaduais e
municipais que regulam o sistema de ensino.
Os movimentos sociais negros, bem como
muitos intelectuais negros engajados na luta anti-racismo, levaram mais de meio
século para conseguir a obrigatoriedade do estudo da história do continente
africano e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra
brasileira e do negro na formação da sociedade nacional brasileira. [...] A lei
federal, simultaneamente, indica uma certa sensibilidade às reivindicações e
pressões históricas dos movimentos negro e anti-racista brasileiros, como
também indica uma certa falta de compromisso vigoroso com a sua execução e,
principalmente, com sua a eficácia, de vez que não estendeu aquela
obrigatoriedade aos programas de ensino e/ou cursos de graduação, especialmente
os de licenciatura, das universidades públicas e privadas, conforme uma das
reivindicações da Convenção Nacional do Negro pela Constituinte,
realizada em Brasília-DF, em agosto de 1986 (SANTOS, 2005, p. 34).
Destarte, podemos afirmar
que a pressão dos movimentos sociais negros de intelectuais engajados/as na
luta pela igualdade racial junto ao Estado brasileiro ainda se faz necessária para que esta Lei
seja executável. O Plano Nacional de Implementação/2008 ainda não conseguiu a institucionalização
dessas leis. Portanto, efetivamente, ainda, não foram transformadas em política
pública de educação.
A reflexão sobre as relações étnico-raciais deve está
incorporada no planejamento escolar e na subjetividade dos agentes sociais que
integram o cotidiano da escola. E são as instituições em nível municipal,
estadual e federal que viabilizarão os objetivos de oferecer às professoras e
aos professores informações e conhecimentos estratégicos para a compreensão e o
combate do preconceito e da discriminação racial nas relações pedagógicas e
educacionais das escolas brasileiras, em outras palavras do racismo brasileiro.
2.1. Planejamento e as perspectivas das leis étnico-raciais
O planejamento, seja em nível de projeto de ensino ou
político-pedagógico, passa pela
resistência de professores e
professoras, cujo desafio é resgatá-lo como necessário e possível, como prática
humana, tendo lucidez de seus limites
(constrangimentos naturais, sociais ou inconscientes, concepções equivocadas)
mas também de suas potencialidades (tomada de consciência, elemento articulador
da ação).
Segundo Vasconcelos (2010, p. 63-64), o processo de planejamento busca re-significar, orientar e dinamizar o
trabalho, implicando investimento de
tempo e, sobretudo, energias, crenças, valores, verdade, reflexão. Portanto,
depende de sujeitos que assumam a sua
elaboração e realização.
Ao caminhar ou trilhar as perspectivas das leis nº 10.639/2003 e nº
11.645/2008 como um projeto a ser construído de forma interativa com os demais
projetos da educação, precisamos de um ponto de apoio, uma referência para esse
movimento. Nesse sentido, o planejamento pode ser um instrumento teórico-metodológico de
intervenção na realidade que possibilita romper bloqueios e apontar caminhos. Conforme
Vasconcelos (2010, p. 75), a fim de fazer do planejamento Méthodos de Trabalho do
educador (pessoal e coletivamente), como postura e como forma de organizar a
reflexão e a ação. Assumido como forma de resgate do trabalho, de superação de
alienação, de reapropriação da existência.
A interação dos conhecimentos culturais e históricos das etnias negra e
indígena com o currículo da escola brasileira é tarefa dos/as educadores/as,
mas estes/as nem sempre concebem ou internalizam esta necessidade, constituindo-se
um obstáculo à operacionalização dessa prática que precisa ser elaborada a
partir de análise da realidade e reflexão sobre os fins almejados. Isto quer
dizer que, há a necessidade de despertar o interesse pela causa, independente da
identidade étnico-racial docente, de gestores/as ou de especialistas, para que
se desenvolva o desejo, a vontade consciente de elaboração e realização dessa
prática. E a partir do conhecimento dessa realidade projetar a finalidade,
esboçar o plano e agir. Conforme Vasconcelos (2010, p.69) esta elaboração no
sujeito:
é
justamente a articulação entre necessidade,
objetivo e plano de ação, vale dizer, o que faz com que tenha
conscientemente uma determinada ação é o fato de, a partir de sua interação com
a realidade, ser criada nele uma necessidade, que o motiva a buscar algo (objetivo), de uma determinada maneira (plano de ação). [...] Muito
sinteticamente, e numa primeira aproximação, podemos dizer que o que leva o
homem a ter uma ação intencional é a necessidade que pode ser vista sob o
prisma da vontade (relacionada a
qualquer uma das dimensões da existência: física, afetiva, intelectual,
estética, lúdica, espiritual, social, econômica, política, cultural, etc.),
e/ou desejo (pulsão,
tendência).(grifos do autor)
Ao planejar incluir os conhecimentos históricos e culturais relativos às
etnias negra e indígena no currículo escolar, professores/as se sentirão
instigados/as a querer, a desejar, a ter vontade, a mover esforço para sua
realização, isto é, ao planejar a escola (professores/as, gestores/as,
especialistas etc.) estará muito mais comprometida com o seu plano de mediação
em decorrência da intencionalidade de
está capacitada a incluir no seu currículo tais conhecimentos sem preconceito e distorções.
A implantação das leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 coloca para a
escola e professores/as a necessidade de assumir finalidades que questionam
representações/conhecimentos/objetos culturais acumulados e reproduzidos
no currículo escolar contemporâneo, mas
que afirmam outras representações, conhecimentos e objetos culturais a serem apropriados pelas novas gerações, que
no processo de inserção cultural passam a se produzir e a produzir cultura,
também, numa nova perspectiva de significado de sua existência e identidade étnico-racial.
O plano de ação construído pela escola representará a sua forma de
intervenção na perspectiva da educação para as relações étnico-raciais, ou seja,
por intermédio dessa atividade
reflexiva, projetiva e mediadora a escola terá um projeto intencional que além
de operacional é também político de
intervenção na realidade. Entretanto, fazer o plano e não comprometer-se com a
sua realização constituir-se-á como uma prática alienada.
Passados já quase 10 anos da promulgação da Lei nº 10.639/2003, obrigando
o ensino da história e da cultura afro-brasileira e Africana na escola
brasileira, constatamos que não bastou a finalidade inicial para garantir a unidade
dialética concepção e ação, proposta na referida Lei. Basta analisarmos nossa
própria prática, seja ela na escola básica ou de ensino superior. Os projetos
político-pedagógico e/ou Institucional e as Diretrizes das Secretarias de
Educação definem a inclusão da “Educação para as Relações étnico-raciais”,
entretanto, ainda são tímidas as experiências de inclusão curricular (no âmbito
do ensino), ou seja, nos planos de
cursos dos diversos níveis de ensino, elas se estabelecem mais no campo da
pedagogia de eventos pela extensão e/ou de atividades extra-curriculares,
podendo ocorrer num ano sim e em outros não, para uma turma ou outra... Isto
quer dizer que os conteúdos da história e da cultura afro-brasileira e africana
não conseguiram sair plenamente da condição de exilados do currículo e dos
processos pedagógicos. Esse fato ainda ocorre por quê? Podemos presumir que não
houve uma elaboração no campo das representações dos/as educadores (da escola),
não ocorreu a passagem das ideias para a transformação da realidade. Muitos
fatores se manifestam, constituindo-se como interferências, sejam pela captação
inadequada das finalidades da lei ou pelas diferentes finalidades, concepções e
representações dos sujeitos da instituição. Os conflitos são emergentes, inclusive,
decorrentes de um processo global intencional de manutenção da realidade atual.
Na atualidade, o processo de escolarização
não pode negar o trato pedagógico e ético à diversidade expressa na vida da escola, de estudantes, de
docentes, seja relativa aos costumes, comportamentos, gostos, etnias, crenças
etc. Diante do questionamento de como lidar pedagógica e etnicamente com as
diferenças, Nilma Gomes (2006, p. 29 -30) destaca:
“Aprender essa diversidade, conviver e enfrentá-la
parece ser um receio da pedagogia e da educação escolar. (...) Se estamos de
acordo que a escola ainda não conseguiu contemplar pedagogicamente essa
diversidade, cabe-nos a tarefa de repensar as práticas, os valores, os
currículos e os conteúdos escolares a partir dessa realidade social, cultural e étnica tão
diversa”.
Posturas equivocadas e preconceituosas de educadores e educadoras são
motivadas pela ignorância corporificada na prática do currículo escolar que
sempre se calou, impôs estereótipos, tratando de maneira preconceituosa e
discriminatória as diferenças presentes na escola, e que, ainda, silencia
diante do chamamento ao debate sobre as desigualdades sociais e étnicas em
nosso país.
Como afirma Nilma Gomes (2006, p.33) a respeito da Lei no 10.639/2003:
A garantia na lei de as populações negras verem a sua história contada na perspectiva da
luta, da construção e da participação histórica é um direito que deve ser
assegurado a todos os cidadãos e cidadãs, de diferentes grupos étnico-raciais,
e é muito importante para a formação das novas gerações e para o processo de
reeducação das gerações adultas, entre estas, os próprios educadores.
Na verdade, já é tardia a hora de reagir ao imobilismo,
à inércia diante das DCNs – ERER (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana no currículo oficial da rede de ensino) e de construir
práticas pedagógicas que realmente expressem a riqueza das contribuições das
matrizes negra e indígena na formação da
sociedade brasileira, uma vez que será na dinâmica social, no embate político,
nas relações de poder, no cotidiano da escola e do currículo escolar que essa
legislação tende efetivar-se ou não. Sendo importante refletir que
explicitamente ou implicitamente, os grupos étnicos (negros, indígenas) constituem-se
conteúdo curricular corporificados por discursos e narrativas particulares
sobre os ditos ‘diferentes’.
No processo de mobilização da escola, a intervenção das
equipes pedagógicas dar-se-á no sentido de fazer avançar o debate, capacitar a
si e propor capacitação aos educadores e educadoras para de forma pedagógica e
crítica inserir no currículo uma discussão profícua sobre as proposições
das DCNs - ERER, especificamente, sobre
o segmento negro. De acordo com a Resolução CNE/CP nº 1, de 17 de junho de 2004, Art. 3o., § 2o: “As coordenações pedagógicas promoverão o
aprofundamento de estudos, para que os professores concebam e desenvolvam
unidades de estudos, projetos e programas, abrangendo os diferentes componentes
curriculares.”
A equipe escolar (gestores/as
e especialistas) deverá articular todo o trabalho em torno da temática,
mediar o processo de planejamento pedagógico e buscar o consenso entre os/as
professores/as, em outras palavras ser
um interlocutor privilegiado junto ao professorado, refletindo e acompanhando o
trabalho de aprendizagem mútua, superando práticas fiscalizadoras, de controle formal e burocrático. A questão sempre recai
no Méthodos de Trabalho, isto é, na
articulação entre intencionalidade, realidade e mediação.
O Méthodos de Trabalho
deve ser resultante da articulação de
intencionalidades político-pedagógicas a
partir do projeto educacional da Instituição. Esse processo de construção do projeto didático, para a implantação das
leis étnico-raciais requer pesquisa, integração e planejamento. E fazer
planejamento significa refletir sobre esse desafio, perceber as necessidades,
re-significar o trabalho, desenvolver postura de enfrentamento e
comprometimento com essa prática e com as suas finalidades. A constituição
desse esquema educativo toma desafio
e impulso como oportunidades e
demandas para a formação de um plano e método de ação. Um contínuo processo de
formação e planejamento.
Nesse sentido, a equipe escolar tem papel fundamental de
instigar professores e professoras a procurarem estudar, pesquisar e trocar
experiências, pois na definição dos conhecimentos étnico-raciais no currículo
espera-se deles/as postura, trabalho crítico e significativo. Os programas e
respectivos conteúdos dependem de como são trabalhados para vir a ser
significativos. De acordo com
Vasconcelos (2010, p.125), a capacidade de conhecer supõe agir conscientemente
de acordo com finalidades e que a ação intencional corresponde a um plano de
ação do sujeito. Desta forma, para que ocorra um autêntico projeto educativo
este deve corresponder a um projeto ou a um encontro de projetos: projeto de
ensino (professor/a) correspondente a um projeto de aprendizagem do/a
estudante, vislumbrando a constituição pelo/a estudante do seu projeto
existencial e profissional.
Ao tratarmos da efetivação das leis étnico-raciais, estamos tratando da
efetivação de uma política nacional de educação, diante do exposto até o
momento, o próprio governo tem que revitalizar o seu plano de mediação nas
esferas municipal, estadual e federal. Segundo Vasconcelos (2010, p.88)
Não há lei
previamente determinada que oriente todo o trabalho educacional. Há fatores
comuns que permitem certo grau de previsão, porém não de forma absoluta,
variando de acordo com as condições objetivas, peculiares.[...] A consciência
tem que está atenta durante todo o processo, tendo em vista as mudanças necessárias.[...] Os fins não
são, portanto, produtos acabados, mas estão neste processo de interação com a
realidade e as formas de mediação. Por isto também, é importante tentar fazer:
ao tentar, conhece-se melhor a realidade, pode-se aquilatar melhor onde está a
resistência. Não é viável, pois, aquela postura de se esperar ter toda a certeza para só depois agir.
Contudo, a reflexão e a revitalização da prática estão, também,
para a escola, como um processo de aprendizagem e de planejamento, cuja
finalidade deverá incluir as proposições das leis nº 10.639/2003 e nº
11.645/2008. Não se faz necessário ser declarado negro, negra, índio ou índia
para trabalhar na sala de aula a participação histórica dessas matrizes no
processo civilizatório brasileiro. Professores/as são profissionais da cultura
e não de um padrão único de estudante, de currículo, de conteúdo, de práticas
pedagógicas, de atividades escolares. Todos, sem exceção, diferem em identidade
étnica, nacionalidade, idade, gênero, crença, classe. Todas essas relações
estão presentes na relação docente/estudante e entre professores/as.
É como sujeitos sociais, históricos, culturais que constituímos as
diferentes presenças na escola, com a responsabilidade de tomarmos atitude
diante da existência humana, re-significando a prática pedagógica, mesmo tendo
que percorrer caminhos ainda não trilhados em busca da superação de esquemas rígidos, desmonte de dogmatismo, modificações no imaginário e
representações coletivas negativas construídas historicamente sobre os ditos “diferentes”. Isto implica a consciência de professor ou
professora como sujeito coletivo e com capacidade de olhar para a própria
história, passar em revista as suas ações, valores e opções políticas, romper
com preconceitos e superar velhas opiniões formadas sem reflexão e sem o menor
contato com a realidade do outro.
O planejamento articulado pela equipe escolar pode colocar-se como um
suporte ao professor e à professora nesse processo de aprendizagem. Uma
oportunidade de refletir antes de agir, durante a ação, e depois dela. A
realização interativa prático-pragmática (empenho do sujeito quanto maior ou
menor nível de intencionalidade e/ou pragmatismo) e a diagnóstica (análise
crítica dos resultados, julgamento da ação), bem como a valorização das
possibilidades criativas e transformadoras da realidade assumem uma importância
no processo de planejamento, juntamente com as atividades reflexivas presentes
na elaboração.
Nessa perspectiva, o projeto/planejamento configura-se como uma tarefa
dedicada e decisiva, pois investe, arrisca e assume a utopia da transformação
da realidade com a alternativa de intervir qualitativamente no currículo, na
perspectiva da inclusão de conhecimentos sobre as matrizes étnico-raciais e
suas contribuições para civilização humana, tornando-as atuais/presentes com a
perspectiva de estarem presentes no futuro, contudo, sem precedente nas
experiências educacionais do passado.
Essa dinâmica não pode ocorrer sem a participação. Planejamento e
participação são necessidades humanas e qualificam o fazer da escola no sentido
de fazer com que as coisas aconteçam. Quanto maior o nível de participação,
maior será a chance de o planejamento ser realizado. Quem ajuda a construir
está mais disposto a ajudar. Privilegia-se o processo. Daí a necessidade de
planejamento participativo em que o sujeito da reflexão é também o sujeito da
decisão, da ação e do usufruto.
Na perspectiva das dimensões atribuídas ao sujeito pelo processo de
planejamento participativo discutiremos um pouco mais sobre a reflexão. A reflexão não interfere
diretamente na realidade, nas condições objetivas, pois quem age sobre a
realidade são os sujeitos, utilizando-se de instrumentos. Contudo sua ação está
pautada num determinado nível de reflexão, pois a prática ocorre baseada numa
significação (ideológica, interesseira, utilitária ou alienada). Na ação
consciente dos sujeitos há sempre uma marca humana a intencionalidade
consciente e orientada a um fim, mesmo
quando a denominamos de alienada
pela falta de qualidade destes. “Podemos dizer que a reflexão é uma mediação,
ela pode agir ‘através’ do sujeito. Para quem deseja a mudança resta, pois, a
possibilidade de interagir com a intencionalidade dos sujeitos, favorecer a
interação entre eles, de forma a que possam ter uma ação pautada numa nova
concepção. No entanto, esta interação não pode ser ingênua.” (VASCONCELOS,
2010, p.11)
Diante de obstáculos objetivos e subjetivos a reflexão vincula-se aos
obstáculos da consciência (conteúdo: ideologias,
preconceitos, bloqueios; forma: estruturas
mentais, lógicas e estilos de pensar) constituindo-se como guia de intervenção
sobre os obstáculos objetivos. “A reflexão tem, pois, por função propiciar o
despertar do sujeito, além de capacitá-lo para caminhar (um conhecimento da
realidade – Análise da Realidade, uma
nova intencionalidade – Projeto de
Finalidades, e um novo plano de ação – Formas
de Mediação).”(VASCONCELOS, 2010, p.12)
Este processo se dá dialeticamente pela articulação de duas dimensões o convencimento
e a intervenção. Pelo convencimento o
sujeito se dispõe para a ação, ao ter questionadas representações equivocadas,
mitos e preconceitos, reelaborando suas representações e atribuindo importância
a sua ação, reconhecendo-se enquanto sujeito mediador e, de uma forma não
necessariamente sequencial, a intervenção se dá na prática que se quer
transformadora, ao entender o contexto,
projetar objetivos e alternativas para a intervenção, isto é, na construção de um caminho viável para a
ação. Quando falta lucidez do processo de alienação, de desorientação,
de falta de compreensão e de domínio das várias manifestações da existência,
o professor ou a professora torna-se o
objeto de manipulação, em função dos
interesses de minorias dominantes e não se compreende capaz de operacionalizar
práticas transformadoras, como também não compreende a implicação do seu trabalho.
Como sujeito afetivo, ético, estético, lúdico, físico, espiritual, social,
econômico, cultural e político o ser humano tem a capacidade estimular o seu
querer, poder e saber (fazer e ser) e,
desta forma, potencializar a sua
capacidade de transformar de intervir e de vislumbrar possibilidade de mudança.
E assim ser sujeito da história - agir sobre si mesmo, sobre as condições reais
da existência e enfrentar os poderes estabelecidos -, pois planejar enseja um
exercício de poder, seja pelo saber produzido, seja pelas relações, negociações
que vão se estabelecendo no decorrer do mesmo. A própria dinâmica da escola e
seus processos de regularidades sociais como as legislações, as rotinas
organizacionais e espaços educacionais predeterminados podem ser obstáculos à
mudança.
A insistência em tomar o planejamento como instrumento
teórico-metodológico na implantação das leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008
nas unidades escolares brasileiras deve também ser levada a efeito no processo
de formação da nova geração de professores/as, especificamente, intensificada
nas formações continuadas dos que estão
em exercício.
Já existe uma produção acadêmica e didática significativa sobre os
conteúdos propostos pelas referidas leis, inclusive com publicações no Portal
do MEC, a exemplo de Livro de Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-raciais
– SECAD (2006) ao mesmo tempo em que já se formulam críticas por parte do
movimento negro sobre as abordagens desenvolvidas nos livros didáticos
produzidos por determinadas editoras. O cuidado é o de não cairmos na
reprodução alienada em sala de aula de conteúdos que não refletirão as
definições das Diretrizes Curriculares da Educação para as Relações Étnico-raciais
(leis nº10.639/2003 e nº 11.645/2008). Imaginemos esse fato aliado ao processo
de desgaste da categoria docente e ao seu despreparo para lidar com a
etnografia, além do que na perspectiva
do planejamento o livro didático estabeleceu-se como uma compensação a
dificuldade do/a professor/a preparar bem suas aulas, e não é difícil prever
que a indústria do livro didático, em curto prazo, dará conta desse
mercado, apresentando uma gama de
conteúdos prontos, sem uma análise mais aprofundada por parte de especialistas
da academia e dos movimento étnicos, a serem meramente copiados,
principalmente, por professores/as (escola) sem uma prática efetiva de
planejamento.
2.2. Abordagem pedagógica dos conhecimentos
étnico-raciais
Um ponto importante nessa discussão é a abordagem
pedagógica do conhecimento relativo à história e à cultura afro-brasileira,
africana e indígena no currículo da escola brasileira. É preciso extrapolar a
perspectiva e conceber o objeto desse conhecimento que está em pauta, mas que não
compôs a gama de conhecimentos e saberes acadêmicos da formação de professores
e professoras desse país, incluindo os de História, Literatura e Arte, enfatizados
na legislação.
Agora, de forma individual e coletiva, esses profissionais estão sendo
convocados a atenderem ao chamamento das leis étnico-raciais, em que deverão
fazer articulações disciplinares, inter/transdisciplinares e críticas no
processo pedagógico. Deverão elaborar e realizar Projetos de Aprendizagem significativos
com a finalidade de aprofundar conhecimentos juntamente com os/as estudantes
sobre a temática. Projetar finalidades/intencionalidade. Fomentar o desejo do
grupo (sala de aula). Formular objetivos de ensino. Resgatar valores
civilizatórios e conhecimentos étnico-raciais exilados do currículo da escola
brasileira.
Desta maneira, ao mesmo tempo em que professores e professoras planejam a
inclusão no currículo dos conteúdos
relativos a contribuição das matrizes negra e indígena na formação da sociedade
brasileira provocam o próprio processo de desalienação e do currículo. Ao terem mais lucidez sobre os
objetivos, buscarão capacitarem-se para mais esse papel, desenvolverão
metodologias adequadas e criativas. Ao passo em que, também, se abre a
possibilidade de recuperar, ainda que tardiamente e em parte, a dignidade das
diversas identidades étnicas e diferentes presenças humanas no espaço escolar.
Não dá para supor que por existir a lei, esteja garantido o direito das
etnias negra e indígena terem as suas contribuições históricas e culturais
incluídas no currículo escolar. Precisamos de objetivos correspondentes a essa
nova perspectiva: coerentes, reais, vivos, concretos que superem aqueles
eurocêntricos, formais, estereotipados e excludentes. Nesse sentido, a prática
deve corresponder à consciência e à vontade de se contrapor a concepção eurocêntrica
do currículo (determinação geral).
Ao se tratar de educação o estabelecimento de objetivos permite uma
postura ativa do sujeito, pois se constitui base para a elaboração de
estratégias de ação. Eles perpassam o projeto educativo da escola, da unidade
de trabalho, do plano de curso, da área, da disciplina ou de um determinado
conteúdo.
Então, para a efetivação no currículo das proposições e definições
contidas nas leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 não existe o melhor caminho,
a questão constitui-se sempre no Methodos
de Trabalho, na articulação entre intencionalidade, realidade e mediação.
Esse processo requer definição e apropriação dos conteúdos expropriados do
currículo, elaboração de um plano de ensino (realidade, finalidade e plano de
mediação) e a sua realização interativa (espaço de trabalho coletivo,
organização da coletividade de sala de aula e registro/memória), além do
reconhecimento das dimensões individuais - intelectual, física, afetiva, ética,
estética, lúdica, religiosa – ou mais sociais e étnicas do sujeito. Isto porque
“no processo de constituição das pessoas (valores, percepção, memória, afetos
etc.), a convivência, o grupo de trabalho desempenha função muito importante.
(VASCONCELOS, 2010, p. 114)
2.3. Organizações sociais na luta pela igualdade racial
O Terceiro Setor, constituído por um universo diverso de
organizações - fundações, ONGs (organizações não governamentais), associações
comunitárias, comissões de defesa do consumidor e muitas outras -, integra essa
luta pela igualdade racial e pela inclusão de excluídos na sociedade,
oportunizando-lhes a cidadania. Além de sua importância política e social as
ONGs vinculam-se à redefinição das relações entre o Estado e a sociedade.
Representam uma forte demanda por participação social nas decisões públicas.
Buscam universalizar valores éticos, produzir conhecimento e cultura,
qualificar a luta da população e gerar novos comportamentos e sensibilidades.
Dentre essas organizações que integram os movimentos sociais muitas têm forte
militância no movimento negro.
Nacionalmente, dentre outros, o Projeto Axé – Salvador-BA, se
constitui um patrimônio pedagógico, uma inscrição social, cuja proposta
pedagógica vem deixando um lastro de inclusão, com o apoio de uma ONG italiana, cuja finalidade é prestar serviços de
educação e defesa de direitos à criança e adolescente em circunstâncias
especialmente difíceis.
De acordo com Macedo (2000, p.67-68), desde o início do Axé,
estava claro o sentimento de exclusão que os estudantes vivenciavam, expresso na
condição racial (negra) e social, nos estigmas e falta de perspectiva de futuro
e foi considerando essa realidade que a proposta pedagógica tomou a cultura de
origem desses estudantes como seu suporte, sua fonte vital de energia e de
desejo de superação dessa realidade. Essa cultura tomada como estratégia
sociológico-pedagógica de inclusão social, através da apropriação, pelos/as estudantes,
de seus signos e símbolos, de forma positiva, se faz na perspectiva de
alteridade, do reconhecimento das diferenças, da diversidade e da singularidade
de grupos e indivíduos da complexa teia social, atentando-se, também, para o
fato de que a cultura é permeável e de que não se pode querer atrelar estudantes
a valores dogmáticos particulares e exclusivistas, tolhendo-lhes a liberdade e
o sentimento de universalidade a que têm direito. Na perspectiva do projeto
Axé, “trabalhar manifestações de arte articuladas à história e à cultura das quais se é portador, reforça a dimensão
de si mesmo e do mundo ao redor de cada um o que, por sua vez, dá a consciência
do poder de se transformar o mundo e nesse processo, universalizar-se.” (MACEDO,
2000, p.69)
A realização da política regulamentada nas leis nº
10.639/2003 e nº 11.645/2008, isto é, tirar
as suas definições do papel pressupõe a abertura e a manutenção de um diálogo
com a tradição cultural e étnica, pessoas, movimentos sociais e instituições
que atuando em diferentes áreas de conhecimento/ação, possam somar no sentido
da implantação destas leis.
As instituições devem deflagrar esse processo de permanente
diálogo interno e externo, tornando-se permeável às ideias que articulam à sua
volta, promovendo seu enriquecimento - parcerias com outras organizações
sociais, instituições públicas ou privadas -, bem como viabilizar a formação de
Núcleos que disponibilizem conteúdos, informações para o universo de
professores/as e de estudantes que articulem com as organizações sociais
permanentes diálogos entre o saber popular e o científico.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com as proposições de
Vasconcelos (2010, p. 161), vivemos numa sociedade que desagrega as dimensões humanas, a exemplo do
trabalho, relacionamento afetivo, consciência, religião etc., uma fragmentação
da vida e do saber como estratégia de
perpetuação da classe dominante. Portanto, uma renovação da estrutura escolar
deve permitir o encontro, a reflexão, a ação sobre a realidade, numa práxis
libertadora, com a conquista de espaços coletivos, a exemplo do espaço
frequente de reunião pedagógica, pois o que desanima a categoria docente é
justamente a não continuidade do processo de planejamento.
A pauta decorrente do processo de implantação das leis étnico-raciais nas
escolas brasileiras impõe a tomada de decisão, tempo para reflexão mais apurada,
trabalho coletivo/interdisciplinar, material didático correspondente, maior
cobrança social de conteúdos deste segmento e um processo de formação contínua
no sentido de superar práticas reiterativas do currículo eurocêntrico, uma
forma de ocupar bem o espaço coletivo da reunião pedagógica, de núcleos
estruturantes de cursos superiores e núcleos étnico-raciais institucionais.
No entanto, todo esse processo requer uma liderança pedagógica atenta a
realidade e as necessidades a serem colocadas como desafio coletivo, visando a
tomada de consciência e definição de
formas de enfrentamento, em outras palavras esse processo requer efetivamente
um planejamento participativo, pois “as ideias se enraízam a partir da
tentativa de colocá-las em
prática. Vai-se ganhando transparência à medida que se vai
tentando mudar e refletindo sobre isto, coletiva e criticamente” (VASCONCELOS,
2010, p.165), considerando a escola no seu conjunto.
É
importante destacar proposições coletivas, envolvendo estudantes sobre as
expectativas político-educacionais da lei nº 10.639/2003 nos Institutos
Federias, especificamente, no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia da Paraíba – IFPB. Representações/proposições elaboradas no 3º Fórum
de Lideranças Negras da Paraíba “Juventude Negra
- Educação, Saúde, Cultura e Economia Solidária para a Promoção da Igualdade
Racial”, que nesta edição aconteceu no IFPB/Campus Campina Grande, no período
de 12 a
14 de abril/2012, uma iniciativa da Malungus – Organização Negra da Paraíba,
para avaliação e busca pela efetivação das políticas de promoção da igualdade
racial para o povo negro, a exemplo do que determina a Lei 12.288/2010 - do
Estatuto da Igualdade Racial. O referido encontro potencializou a articulação,
organização e protagonismo da juventude estudantil, assim como a valorização de
ativistas do movimento negro brasileiro, em especial paraibano, promovendo o
diálogo entre o saber social (da comunidade), o saber científico e política
social.
Sem
desconsiderar as importantes contribuições sobre Saúde, Cultura e Economia
Solidária, enfatizaremos as proposições aprovadas pela plenária do referido
fórum, oriundas do Grupo de Trabalho: Políticas de Educação para a Igualdade da
Juventude Negra, composto majoritariamente por estudantes de diversos Campi do
IFPB:
1- A princípio proporcionar condições à formação de grupos de estudos sobre Educação das Relações
Étnico-raciais e história e cultura afro-brasileira e africana em cada Campus do IFPB,
contemplando estudantes, professores/as e especialistas, gestores/as, profissionais
de apoio, pesquisadores/extensionistas e representantes da comunidade e de
movimentos sociais e étnicos.
2- Implantar institucionalmente os Núcleos de Estudos sobre Educação das
Relações Étnico-raciais, História e Cultura
Afro-brasileira, Africana e Indígena (NEABI ou NERER) propostos pela legislação
vigente, em cada Campus do IFPB,
na mesma constituição dos grupos de estudos.
3 - Formação
continuada com o desenvolvimento de temáticas étnico-raciais (capoeira,
capoterapia, influência de conhecimentos da matriz africana na ciência e na
tecnologia) para professores, gestores e funcionários de apoio.
4 - Na implementação da Lei 10.639/2003, os Institutos Federais poderão incluir nos planos pedagógicos e orçamentários a figura do “Professor
convidado/tutor” para assessorar equipes docente e pedagógica no
desenvolvimento de conteúdos de Matriz
Africana e sua influência científico-tecnológica.
5 - Ao se trabalhar os conteúdos da religião de matriz africana, o/a professor/a deverá ser assessorado/a diretamente pelo sacerdote e/ou sacerdotisa (sem
proselitismo), uma vez que sobre esse tema recai toda um carga histórica
negativa de intolerância, desconhecimento e preconceito por parte da sociedade.
6 - Incluir as cotas raciais nos processos seletivos dos Institutos
Federais/Universidades do País e nos
respectivos programas de benefícios estudantis.
7 - Expandir o projeto caminhos da escola para facilitar a permanência
dos estudantes ingressos pelas diversas
cotas.
8- Incluir nos planos orçamentários, financeiros, verbas para
participação de estudantes em eventos intercampi dessa natureza dentre outras.
A aproximação destes estudantes, professores e especialistas com a
temática étnica negra nesse fórum
correspondeu, certamente, a alguma necessidade desses sujeitos no seu
processo de desenvolvimento, ajudando-os
a compreenderem tal realidade e a formularem seu projetos de
aprendizagem e/ou didáticos a respeito dessa temática, isto é, um plano de ação
mental do sujeito. Analogamente, o projeto do/a professor/a deve provocar uma
ação significativa, atitude de projeto nos/as estudantes, criando necessidades,
gerando finalidades e plano de ação, interagindo e acreditando neles/as, nas
suas potencialidades.
4 – REFERÊNCIAS
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etnocentrismo. In Direitos
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Ensino-Aprendizagem e Projeto Político-Pedagógico – elementos metodológicos para elaboração e realização. 21 ed. São
Paulo: Libertad Editora, 2010. Cadernos Pedagógicos do Libertad, v.1
ZENAIDE, Maria
de Nazaré Tavares, et al. Direitos
Humanos: capacitação de educadores. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPB, 2008.
[1] Texto submetido
a
Coordenação Geral de Relações Étnico-Raciais, Inclusão e Diversidades do
CEFET-MG, Editora CRV e Diretoria de Extensão do CEFET-M para integrar um livro
sobre Práticas Extensionistas:
Relações Étnico-Raciais, Políticas de Inclusão, Gênero e Diversidades.
[2] Maria José Pereira Dantas, Pedagoga com habilitação em supervisão
escolar e especialista em educação tecnológica – UFPB/CEFET-PB. Professora da
Educação Básica I, no Sistema de Ensino Municipal – PMJP (1988-2012) e pedagoga na Rede Federal de Educação
Tecnológica - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba –
IFPB (1995-2012). Mestranda em Ciências
da Educação da Universidade Tecnológica Intercontinental - UTIC – Paraguai. E-mail:
mrjsdantas@gmail.com. Celular (83)
8805 6722.
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